O século XX foi, sem dúvida alguma, um século de muitas turbulências, lutas e mudanças, mais do que qualquer outro que o precedeu. Foi nele onde muitos Impérios tiveram seu apogeu e também seu ocaso; onde os povos do mundo tomaram consciência de sua situação e empreenderam lutas armadas por sua libertação. Foi também o século das revoluções e dos revolucionários. Embora tudo isso esteja ligado no escopo maior que é o assim chamado processo histórico, a ligação entre diferentes lutas, conceitos e personalidades também é intimamente ligada por outros fatores.

Uma dessas ligações é a existente entre o primeiro guerrilheiro bem-sucedido do século XX, Muhammad Abd el-Krim al-Khattabi, que liderou os amazigues rifianos numa luta contra os colonizadores espanhóis e franceses, e o culturalmente mais influente guerrilheiro que já existiu, Ernesto “Che” Guevara. Embora a relação entre Abd el-Krim e outros grandes revolucionários, como Mao Zedong, seja bem atestada (como veremos no texto), a relação entre o rebelde marroquino e o “rebelde sem pátria” é bem menos clara, mas como aqui veremos, perfeitamente plausível.

Abd el-Krim al-Khattabi: o precursor da guerrilha moderna.

Abd el-Krim al-Khattabi nasceu em 1882 ou 83 em Ajdir, na região do “Rif”, uma faixa de terra montanhosa no Norte do Marrocos, que à época estava sob domínio da Espanha. Filho de um renomado qadi (juiz islâmico), foi educado desde a infância em teologia e árabe. Quando chegou aos 20, estudou em madraças em Fez, a capital intelectual do Marrocos, tendo depois se matriculado na Universidade de al-Karaouine, considerada por muitos estudiosos como sendo a mais antiga instituição de Ensino Superior do Mundo. Enquanto estudava teologia, literatura e língua espanhola, seu irmão Muhammad decidiu dedicar-se à engenharia de mineração. Em Melilla, no Rif, Abd el-Krim trabalhou como professor, tradutor para o espanhol, adido do escritório espanhol para os "Assuntos Nativos" do Marrocos e como jornalista para o jornal hispânico Telegrama del Rif sendo, à época, um grande defensor das autoridades coloniais.

Abd el Krim Al-Khattabi com seu pai em 1919.

Abd el-Krim (extrema esquerda) mostrado enquanto trabalhava para o Escritório de Assuntos Nativos.

Um dos seus objetivos como partidário dos espanhóis era escolher “o mal menor”: proteger-se dos franceses sujeitando-se aos espanhóis. O Sultão do Marrocos havia assinado o Ato da Conferência de Algeciras em 1906, que autorizava os franceses a estabelecer um protetorado sobre o Marrocos. Durante a Primeira Guerra Mundial, devido à relação íntima de seu pai, al-Khattabi e dele mesmo com autoridades e empresas alemãs no Marrocos, as autoridades espanholas, a pedido das vizinhas francesas, prenderam el-Krim, que foi solto perto do fim da guerra. Durante a guerra, todavia, a política dos espanhóis para com as populações do Rif tornava-se cada vez mais opressiva, fato esse que Abd el-Krim viu com os próprios olhos quando saiu da prisão. Seu pai lançou, em 1919, uma rebelião abortiva que foi encerrada no mesmo ano com sua morte. Diante do abuso de seu povo, todavia, Abd el-Krim estava determinado a se rebelar.

Território aproximado do domínio da República do Rif em seu apogeu.

Bandeira da República do Rif

Em 1921, ele proclamou, juntamente de várias tribos amazigues rifianas, a República do Rif, dando início também a uma guerra de guerrilha contra as forças de ocupação espanholas. Abd-el-Krim aprendeu rapidamente o jogo da política e aproveitou os antagonismos entre os imperialistas para explorá-las: ele liderou os rifianos em duas grandes e contra os espanhóis, que se provaram desastrosas para o mesmos: a Batalha de Annual, conhecido na Espanha como O Desastre de Annual, onde 23 mil espanhóis foram humilhados e massacrados por 3 mil berberes, contando entre seus mortos o General Manuel Silvestre; e a Batalha de Chaouen, onde os espanhóis, novamente humilhados, perderam mais de 10 mil homens dentre mortos, feridos e capturados.

Guerreiros de Abd el-Krim no Rif

Cadáveres espanhóis após a derrota esmagadora em Annual

Apesar de seus sucessos, Abd el-Krim cometeu um erro que se arrependeria até o fim da vida: atacou os franceses, que por sua vez estavam cerceando um dos vales que lhe era fonte preciosa de comida. Ao mesmo tempo, a comida já era escassa devido ao solo contaminado por ataques químicos aéreos pelos espanhóis, o primeiro desse tipo na história, cujo objetivo era destruir campos e fontes de água da população já miserável do Marrocos. Enquanto isso, franceses e espanhóis se uniram militarmente para lidar com a ameaça rifiana; o jovem Partido Comunista da França fez uma campanha em favor de el-Krim e contra o envolvimento francês na guerra. Para esmagá-lo, sob a orientação do Marechal Pétain (o futuro colaborador nazista durante a Segunda Guerra Mundial), foi necessário um grande esforço.

Desembarque das tropas anglo-espanholas em al-Hoceima, no Rif:o começo do fim.

Em 26 de maio de 1926 Abd-el-Krim foi forçado a se render às forças francesas. Junto com sua família, ele foi exilado para a ilha francesa La Reunión, localizada no leste de Madagascar. No entanto, em 1947, a caminho da França, ele conseguiu escapar e viveu doravante no Cairo no Egito até sua morte em 1963, onde recebeu inúmeras visitas de vários personagens importantes das lutas anticoloniais, das quais ele próprio foi um dos primeiros expoentes.

É um fato incontestável que as técnicas e tácticas militares aplicadas pelos rifianos durante os confrontos causaram grande surpresa, mas também admiração, não só entre os soldados adversários como também entre os oficiais de alta patente. No contexto da campanha de El Mers em 1923, na qual as forças francesas tiveram baixas significativas, Windrow observa:

"O príncipe Aage [um capitão francês de ascendência real] os viu chegando de seu dianteiro esquerdo; ele obteve uma certa profissional na habilidade com que [os rebeldes] alternavam entre movimentos montados e escaramuças a pé com carabinas.''

Estudos acadêmicos sobre Abd-el-Krim e a guerra de Rif frequentemente caracterizam Abd-el-Krim como coinventor de táticas de guerrilha modernas. Algumas das táticas e métodos que são mencionados na literatura são as seguintes: o uso de trincheiras; cavernas escavadas nas encostas; uso extensivo de muralhas de granito, rochas, cumes repletos de pedras nas colinas como cobertura a partir da qual mirar o inimigo; o uso de fuzis de pólvora sem fumaça que impossibilitaram a localização de seu usuário; esconder canhões em cavernas e usá-los exclusivamente à noite, o que impossibilitava sua descoberta. A pesquisa mundial sobre a guerra Rif é unânime de que as táticas de guerra dos rifianos foram emulados durante outras rebeliões, tais como:

  • A Guerra Druza da Síria contra a França (1925–1927);
  • A Guerra de Independência da Argélia contra a França (1954–1962);
  • A Guerra do Vietnã contra os Estados Unidos (1946-1954).

A novidade das táticas empregadas por Abd el-Krim e seus comandantes, bem como seu sucesso inicial estupendo, despertou a curiosidade e a fascinação de líderes revolucionários anticoloniais do século XX - como os líderes vietnamitas Hô Chi Minh (1890-1969) e seu braço direito, o General Võ Nguyên Giáp (1911-2013), do movimento Vietminh que lutou contra a França e os EUA; o líder iugoslavo Josip Broz Tito (1892-1980), que lutou contra os nazistas e italianos na Segunda Guerra, e o argentino Ernesto “Che Guevara”, que por sua vez é considerado - com muita razão - o maior e mais influente guerrilheiro do século XX, juntamente de seu companheiro Fidel Castro; Mao Zedong, o fundador da República Popular da China que resistiu aos japoneses na Segunda Guerra, também. Todos eles são especificamente mencionados como tendo sido influenciados pelas táticas militares de Abd-el-Krim, incorporando-as nas suas próprias estratégias de guerrilha, ou tendo, no mínimo, elogiado e tido em alta estima a figura de Abd al-Krim.

Ho Chi Minh e Vo Nguyen Giap: admiradores pessoais de Abd el-Krim.

Abd el-Krim, por sua vez, gostava das visitas que recebia no Cairo: continuou a manter contato com Ho Chi Minh, que lhe pediu para fazer um apelo aos soldados magrebinos no Vietnã para pararem de lutar contra ele (a França empregava soldados marroquinos em seu império colonial). Como resultado, muitos soldados marroquinos desertaram das forças francesas para o Vietminh.

Em 1971, Mao disse a uma delegação palestina do Fatah (grupo de resistência anticolonial israelense de Yasser Arafat):

“Você veio até mim para me ouvir falar sobre uma guerra popular de libertação, mas em sua própria história recente você tem Abd el-Krim. Ele é uma das fontes de inspiração mais importantes, das quais aprendi o que é exatamente a guerra popular de libertação.”

Também há alegações de que o próprio Che Guevara teria visitado e conhecido Abd el-Krim em 1959 no Cairo. Castro não menciona que havia discutido com Che qualquer coisa sobre suas leituras particulares sobre o Rif, mas afirma claramente que seu mentor e o mentor de Che, Alberto Bayo - ele próprio um veterano do Rif - costumava ensinar em seu campo métodos de guerrilha que havia encontrado durante suas missões no Marrocos. É bem plausível que Che, que foi ao Egito em 1959, de fato, tenha visitado al-Khattabi num encontro privado, não mencionado nem mesmo pelos seus biógrafos. Che, um leitor ávido, no mínimo leu sobre a biografia de Abd el-Krim, uma vez que seu próprio companheiro Fidel, que tem na sua biografia relatos sobre como ele estudou e se fascinou sobre a Guerra do Rif e o Desastre de Annual, o fez com afinco. Nas próprias palavras de Fidel: "Eu li toda a história dessa guerra."

Alberto Bayo - a quem Guevara se referiu como “seu mestre” (El maestro), o único que ele reconheceu - ingressou no exército espanhol em 1916 e tornou-se piloto da Força Aérea. Suas primeiras designações no Marrocos começaram em 1919. No entanto, em 1923, ele foi demitido do serviço. Eventualmente, Bayo se juntou ao corpo de elite Legión Española (a “Legião Estrangeira” espanhola), que foi fundada especificamente para combater os rebeldes no Marrocos. Gravemente ferido em batalha, ele retomou tempos depois sua luta contra os rebeldes até o fim da guerra do Rif em 1927.

A extensão da admiração de Bayo pelas táticas dos rifianos é descrita da seguinte forma: Castro conseguiu persuadir o Coronel Alberto Bayo a dar a um seleto grupo de quadros treinamento teórico e prático em guerrilha. Bayo era conhecido na América Latina como um especialista neste campo, tendo servido nas forças espanholas que lutaram contra Abd El Krim no Marrocos. O coronel tornou-se admirador dos guerrilheiros marroquinos e fez um estudo de suas táticas, que procurou, sem sucesso, colocar à disposição do governo republicano da Espanha na guerra civil contra Franco.

Rebeldes rifianos com armas francesas e espanholas capturadas.

Em 1955, Bayo publicou no México seu 150 Preguntas a un Guerrillero, que apresenta um conjunto de táticas de guerrilha que se assemelham às usadas e vistas na Guerra do Rif, como as diferentes formas de atacar uma delegacia de polícia, a escavação e uso extensivo de túneis e diferentes táticas de uso de terrenos, além da segregação de efetivos em pequenas unidades de 300 a 500, que por sua vez eram subdivididas em grupos ainda menores. Todas elas possuem paralelos em relatos franceses e espanhóis sobre os métodos dos rifianos, o que indica uma forte influência daquilo que Bayo viu e experienciou no Marrocos na década de 20.  O livreto foi traduzido para o inglês em 1963 e, devido ao seu sucesso, foi reimpresso várias vezes. Até hoje, conta como um dos clássicos da literatura militar sobre pequenas guerras

As táticas descritas no livro também foram bastante empregadas pelos dois pupilos de Bayo, Fidel e Che, na sua luta contra a ditadura de Fulgêncio Batista. Che, à semelhança daquilo que é descrito por seu “mestre” Bayo em seu 150 Preguntas e por outros observadores das táticas rifianas, define como sendo a tática primária da guerra de guerrilha:

“Ataque e corra, espere, observe com atenção e depois ataque e corra novamente.”

À semelhança desse resumo tático de Che, temos a tática favorita de Abd el-Krim tal qual como relatou um oficial espanhol durante as operações no Rif:

''Qualquer parada que não seja para lançar uma fuzilaria rápida encorajou os berberes a concentrar seu próprio fogo, prendendo o pelotão e criando um alvo estático para o qual os membros da tribo foram instintivamente atraídos.''

Sobre Deadly Embrace, sua obra sobre a Guerra do Rif, Sebastian Balfour comenta: ''Che Guevara teria aprendido sobre Abd el Krim do veterano republicano espanhol da campanha colonial marroquina, Alberto Bayo, que treinou ele e outros combatentes de Castro no México antes da expedição do Granma em 1956. Bayo ficou impressionado com as táticas de guerrilha de Abd el-Krim.''

Transmissão de conhecimento militar através de movimentos de guerrilha através de oficiais militares, como protagonizou Alberto Bayo, não é um fenômeno raro. Colaborações e deserções sempre atormentaram os exércitos oficiais em todos os lugares do mundo. Alberto Bayo não desertou, mas sua decisão de treinar guerrilheiros - embora anos mais tarde e em outros lugares - depois de deixar seu trabalho no exército espanhol dá razão para classificá-lo como "desertor". Seu treinamento de Che e Fidel, sua luta no Rif, bem como as semelhanças encontradas entre seus ensinamentos práticos somadas às táticas empregadas por Che e Fidel e o seu “MR-13” em Cuba, mostram àqueles que querem ver uma relação íntima e outrora improvável entre os guerrilheiros muçulmanos do Rif de Abd el-Krim e os grandes nomes da guerrilha de esquerda latino-americana.

O fato de outros líderes militares internacionais ligados ao movimento socialista também elogiarem e mesmo se basearem em Abd el-Krim parece nos dar uma certeza de que o “grande comandante” Che, de fato, aprendeu a fazer guerra com um muçulmano.

Bibliografia:

  • DOSAL, Paul J. - Comandante Che: Guerrilla Soldier, Commander, and Strategist, 1956–1967 (USA: The Pennsylvania State University Press, 2010), 49
  • CASTRO, Fidel and RAMONET, Ignacio - My Life: A Spoken Autobiography (USA: Scribner, 2008), 162, 168.
  • ER, Mevliyar (2015) - Abd-el-Krim al-Khattabi: The Unknown Mentor of Che Guevara. Taylor & Francis Group, LLC.
  • BALFOUR, Sebastian (2002) - Deadly Embrace: Morocco and the Road to the Spanish Civil War (USA: Oxford University Press).
  • SNEEVLIET, Henk (1926) The class struggle element in the liberation struggle of the Indonesian people. Klassenstrijd, p. 17.
  • https://www.marxists.org/archive/sneevliet/1926/class-liberation.htm#n4